sexta-feira, julho 16, 2010

A subjetividade do consumo


» FILOSOFIA

A febre das mudanças perpétuas

Em seu livro A felicidade paradoxal, o filósofo francês Gilles Lipovetsky questiona o mundo em que vivemos, onde o consumo dita as regras

Fabianna Freire Pepeu

As questões geradas por um modo de vida baseado no consumo têm sido abordadas por inúmeros estudiosos do mundo contemporâneo. Também é assim com o brilhante e também igualmente polêmico Gilles Lipovetsky, que é professor de Filosofia da Universidade de Grenoble, na França. Em seu livro A felicidade paradoxal (Cia. das Letras, 408 páginas, R$ 60), ele afirma que nunca na história do mundo ocidental houve tanta oportunidade como agora de satisfação das aspirações individuais pelo mercado. No entanto, a felicidade originada da satisfação imediata proporcionada pelo mundo moderno é, para ele, uma felicidade ferida, pois jamais o indivíduo contemporâneo atingiu tal grau de desamparo como agora.

Para situar o leitor, Lipovetsky divide o que chama de era do consumo em três fases: o primeiro ciclo começando por volta de 1880 e chegando ao fim com a Segunda Guerra Mundial, período em que o pequeno mercado local é substituído pelos grandes mercados nacionais, em razão do surgimento da moderna infraestrutura de transporte e comunicação. O segundo momento, a partir de 1950, teria sido marcado pela economia fordista: aumento na produção e no seu escoamento. Foi nessa segunda fase que o consumo de automóveis, televisão e aparelhos domésticos, ícones da sociedade de consumo até então, aumentou de maneira significativa. “Houve a difusão do crédito, as massas pela primeira vez têm acesso a uma demanda material mais psicologizada e mais individualista e a um modo de vida antes associado às elites”, pontua em seu livro.

É a partir dos anos 1970, segundo o autor, que começa o terceiro ciclo – a fase atual – que ele apelida de sociedade de hiperconsumo, época marcada pela subjetividade do consumo. O desejo não é de objetos úteis, mas de um algo qualquer que dê prazer e conforto, sendo o hedonismo (doutrina filosófica-moral que afirma ser o prazer o bem supremo da vida humana), o sentimento que permeia essa relação.

A aquisição de mercadorias, com a sofisticação das estruturas capitalistas, já não implica em dar suporte à existência e a sobrevivência humana. Na hipermodernidade, sustentada pelo mercado liberal e pela democracia, o hiperconsumo instaura um tempo marcado pela “aventura individualista e consumista das sociedades liberais.”

Uma outra característica da sociedade hipermoderna é a “febre da mudança perpétua”. Auxiliado por Freud que dizia que “a novidade será sempre a condição de gozo”, Lipovetsky pergunta: “Não é precisamente esse poder da novidade que constitui uma das grandes molas atrativas do consumo?” para, depois, sentenciar: “Excitação e sensações é que são vendidas”. E escreve ainda: “Uma estética do movimento incessante e das sensações fugazes comanda as práticas do hiperconsumidor.”

A todo momento, o individualismo perpassa as novas escolhas. Segundo o escritor, em outros momentos da história, existiam modos de socialização, “normas e referências coletivas que distinguiam o alto e o baixo, o bom gosto e o mau gosto, a elegância e a vulgaridade, o chique o e popular, as culturas de classe instituíam um universo claro e sólido de princípios e de regras fortemente hierarquizados e assimilados pelos sujeitos. Essa ordem hierárquica se desmantelou.”

EXPOSIÇÃO PÚBLICA

Às favas com os pudores da subjetividade. A exposição pública de aspectos historicamente ligados ao que era íntimo e privado é outro ponto importante abordado. A vida pessoal passa a ser exposta à luz do dia. E o livro cita alguns exemplos: biografias escandalosas, conversas telefônicas em público, programas televisivos nos quais os entrevistados contam suas intimidadas, promoção de celebridades insignificantes, e jogos de telerrealidade em que os feitos e os ditos cotidianos dos participantes são retransmitidos ininterruptamente ao público.

Esse mostrar tudo, dizer tudo e ver tudo é responsável pelo apelido de sociedade transparente, que, segundo Lipovetsky, vem sendo dado à sociedade de hiperconsumo, numa época em que os indivíduos parecem não ter mais nada a esconder de um público cujos assuntos preferidos são o desvendamento dos estados de espírito. “Depois do sensacionalismo das notícias e dos furos da vida política, nossa época é magnetizada pelo exibicionismo da intimidade do homem comum.”

Gilles Lipovetsky nasceu em Millau, cidade do interior da França, em 1944, e é considerado um dos mais brilhantes pensadores da atualidade. Desde a década de 1980, ele dedica-se a estudar questões ligadas ao consumo e o comportamento humano que resulta dessas relações. Tem inúmeros livros publicados no Brasil, entre os quais, A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo e O império do efêmero.

(Publicado no Jornal do Commercio - Recife, 02/05/2010)

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