quinta-feira, julho 08, 2010

Eu mereço um lugar ao sol


MEMÓRIA

Há 20 anos, a poesia não é mais a mesma

Autor de versos ao mesmo tempo ternos e contundentes, Cazuza se foi, vítima da aids, mas deixou legado que ecoa nas novas gerações

Fabianna Freire Pepeu

“A alma lavada/ Sem ter onde secar/ Eu corro/ Eu berro/ Nem dopante me dopa/ A vida me endoida/ Eu mereço um lugar ao sol.” Tantos fragmentos similares a esses e quantos outros nos habitam? E pensar que, exatamente hoje, já se contam 20 anos desde que Cazuza foi embora, vítima de aids, aos 32 anos de idade.

Era o autor dos versos acima e de tantos outros mais ou menos complexos, pedaços de canções que perambulam o dia a dia dos que viveram aqueles movimentados anos 1980 – tempo de uma poética de insubordinação, deboche e ousadias.

Nascido Agenor de Miranda Araújo Neto, no Rio de Janeiro, em 1958, Cazuza ganhou fama por ser um roqueiro rebelde – se é que isso não se configura num pleonasmo – de personalidade supostamente polêmica e pela sua prática boêmia.

Ao lado de Frejat, seu importante parceiro musical, no Barão Vermelho, onde atuou como vocalista de 1982 a 1985, faria composições que ficariam para sempre na memória do rock nacional, a exemplo de Bete Balanço, Pro dia nascer feliz, Todo amor que houver nessa vida e Maior abandonado. Depois que resolveu sair da banda, gravou ainda cinco discos solo, entre os quais Exagerado, Ideologia e Só se for a dois, lançando sucessos como Codinome beija-flor e Só as mães são felizes e Balada de um vagabundo.

Certa vez, em entrevista ao Jornal do Commercio, o produtor musical Ezequiel Neves, que conheceu o músico em 1979, afirmou: “Quando ouvi a demo do Barão Vermelho, achei a banda maravilhosamente underground. Soube que era o Cazuza quem cantava ali, liguei pra Lucinha (Lucinha Araújo, mãe do roqueiro) e disse: “Prepare-se porque seu filho é absolutamente genial”. Nessa mesma entrevista, o produtor contou que, ao conhecer Cazuza, a empatia foi imensa. “Ficamos amigos instantaneamente”, relembrou.

Relatos semelhantes acerca de uma personalidade cativante ouviu a jornalista Tatiana Notaro, que, produziu, em 2007, para o JC, uma reportagem pelos 50 anos de nascimento do cantor e compositor carioca. “Em todos os relatos, os amigos falavam de uma pessoa verdadeiramente apaixonante. Foi muito comovente. Sandra de Sá, por exemplo, chegou a chorar ao telefone (Cazuza é padrinho do filho de Sandra, Jorge). Já Ezequiel Neves disse-me que Cazuza é a ausência mais presente na vida dele. Ele ainda é muito vivo nessas pessoas. Claro que aí há aquele simbolismo da morte, quando os defeitos são atenuados, mas falo do aspecto humano que era algo forte – muito contagiante – para aqueles que conviveram com ele. Essa lembrança acaba sendo, invariavelmente, o que sobra de cada um de nós quando morremos”, diz Tatiana.

Já a polêmica em torno do seu nome remete muito mais, na verdade, ao fato de ele ter declarado, em algumas entrevistas, a sua orientação sexual e por ter assumido que era soropositivo, num momento em que a aids era uma doença-tabu, muito mais ainda do que é hoje.

Mas para alguém com a personalidade como a de Cazuza não era possível fazer concessões: era preciso assumir e dizer tudo. Por outro lado, ele não teve apenas o seu lugar ao sol, como achava que merecia. Ele se inscreveu num certo céu nacional.

Último show foi no Recife

Foi no pavilhão do Centro de Convenções de Pernambuco, no dia 24 de janeiro de 1989, que Cazuza fez o seu último show. “Lembro que ele estava muito frágil. Falou muitos palavrões e estava bem agressivo”, conta o crítico musical José Teles, deste JC, que assistiu a despedida de Cazuza dos palcos.

“Em nenhum momento, por telefone, até mesmo quando intermediamos as entrevistas com a imprensa, deu para perceber o quanto ele estava debilitado”, recorda a jornalista Silvana Pedrosa, da Raio Lazer, empresa responsável pela vinda do artista ao Recife.

Cazuza tinha se apresentado em Fortaleza, numa sequência de cinco shows que tinha agendados numa turnê pelo Nordeste, que terminou não cumprindo totalmente.

O pavilhão estava lotado. “Ele atrasou mais de duas horas para começar o show, e entrou apoiado no palco”, conta Silvana. “A impressão que se tinha é que todos queriam se despedir dele. Todos cantavam para dar suporte e ajudar o artista e choravam ao mesmo tempo”, diz.

Na época, segunda ela, muita gente – como é de rotina em shows – levou seus LPs, na tentativa de conseguir um autógrafo. Isso também não ocorreu.

O máximo que o artista conseguiu foi fazer um esforço sobrenatural para cantar em meio a sua enorme fragilidade. Em meio ao desespero, insultou a plateia, jogou uma latinha de refrigerante de modo agressivo e disse frases desconectas. Depois, em outro momento, justificou sua agressividade. “Não queria que sentissem pena de mim”. Por isso, falava o que vinha à cabeça e responsabilizava o AZT (droga utilizada no tratamento de aids) pelas reações sem lógica aparente.

Depois daquele show, em 14 de março, foi internado com hepatite. Saiu no dia 4 de abril, seu aniversário, e passou a se locomover em cadeira de rodas. Em 7 de julho de 1990, morreu por choque séptico, causado pela doença.

(Publicado no Jornal do Commercio - Recife, 07/07/2010)

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