sábado, abril 29, 2006

De quando tornei-me um besouro maldito...

Eu era muito jovem quando li A Metamorfose, de Kafka. Mais divertidas eram as comidinhas árabes que eu viria a conhecer depois, cujos nomes tinham sonoridades semelhantes ao do nome do escritor nascido em Praga, uma das cidades mais lindas que já visitei. Nem queria sair de lá. Deixei o visto expirar, fiquei clandestina, perdi o bilhete de trem para o retorno, sendo obrigada a comprar um outro, tirando recursos de uma caixinha já muito esvaziada. O motivo era a própria cidade, uma enorme ponte ladeada por lindas esculturas, suas colinas e arquitetura. Além disso, com a proximidade do Natal, havia música por toda parte na cidade, algo que me fazia sentir como se estivesse dentro de set, algo muito adequado à cinéfila sonhadora que sempre fui.

Mas, voltando ao que é monstruoso, aterrador, claustrofóbico e, aparentemente, sem sentido, pesco na memória o nome de Gregor. Para os otimistas de plantão, que enchem um pouco o saco, é mesmo fantástico, que a essa altura do campeonato, eu ainda lembre do nome da personagem principal.

O fato é que aconteceu mais ou menos assim: aos poucos fui tomando o aspecto horrendo de um besouro maldito. Cheia de areia nos olhos, comecei minha descida aos infernos. Cada parte do meu corpo seria afetada de maneira e intensidade diferentes.

Não sei se besouro tem orelha, mas o meu novo formato besouro incluía uma casca preta grossa que cobria as duas orelhas. Toda a área ganhou um aspecto mórbido.

Mas seria, certamente, a boca - cavidade e lábios - o lugar do meu martírio. Dali nada entrava ou saía, exceto dor e gemidos. Além da aparência grotesca, o mal ali faria sua festa de gala.

Pelo corpo, feridas.

Na alma, desespero.

Na sala inteira, discórdia.

Aos poucos, fui perdendo peso, sangue, uma ou outra certeza, esperança, desejo, criatividade e força. Dia após dia, tudo se agravava e eu vivenciava um terrível pesadelo. E o pior é que sabia que ninguém me acordaria. Todos os anjos pareciam ter me abandonado. Eu estava nas mãos do diabo. E ele faria o diabo comigo.

Eu não sabia que um ser humano poderia sobreviver a tanta dor física. Achava que Jeshua tinha passado por tanta dor, mas em função de um propósito supra-humano. Agora sei que homens e mulheres foram feitos para sobreviver, apesar da dor extrema que podem experimentar.

Mas, apesar disso, eu intuía que Ele havia sofrido ainda mais do que qualquer ser humano, e era isso que eu tentava lembrar a cada açoite diabólico. Mel Gibson, em A Paixão de Cristo, não exagerou em nada, ao contrário do que se disse quando do lançamento do seu filme. Ele tão-somente mostrou, quase em caráter documental, o que fizeram ao Filho de Deus. Não é possível pensar que era sucesso e reconhecimento o que ele queria. Na verdade, foi muito corajoso mostrar, numa época como a nossa, o que se passou em Jerusalém.

Jeshua foi torturado. Muitos vêm sendo torturados, por motivos diversos, ao longo dos séculos. O legista que examinou o corpo do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, declarou que ele sofreu tanto, mas tanto, que o cadáver ficou em estado de trauma perene. Ou seja, mesmo depois de morto e bem morto, o cadáver parecia sentir dor. Tecnicamente, não é bem assim. Essa é, digamos, uma licença minha de interpretação.

De qualquer forma, o que estou tentando dizer, de maneira enrolada e prolixa, é que a tortura é inaceitável e que ela deveria ser banida da Terra. Pois, as outras dores, aquelas que são provocadas por outros seres humanos a gente não tem como evitar. A dor de não ser correspondido no amor, por exemplo, não tem jeito: não se pode evitar. Também não se pode fazer nada contra o poder do Mal. Apenas rezar para que o bem vença no final.