segunda-feira, agosto 20, 2007

Voo na infância

Foi Ivana quem me pediu para escrever um texto sobre uma outra amiga de infância. Eu não sei escrever encomendas porque isso é coisa muito difícil. Aliás, escrever é difícil de qualquer jeito. Mas o motivo do pedido era relevante e eu aceitei o desafio. Era necessário registrar - em algum lugar - palavras que guardassem o que o destino teimou em levar. Vou tateando e amaciando o teclado e me ponho triste. Muito tristes, vejo-os daqui de tão longe, devem estar Dona Lourdes, Seu Severo, Alexandre, Maria Eduarda e Tiago.

Lembro bem de Dona Lourdes, na porta da casa, nos recebendo com simpatia enquanto, do lado de fora, um bando de meninas trelosas berrava, chamando a amiga para passear de carro. Passear de carro era uma aventura naquele tempo. Ninguém tinha carteira de motorista, nem carro próprio, nem nada. Tratava-se de uma deliciosa esculhambação. Lembro também que, muitas vezes, Jane apenas ouvia as histórias engraçadas contadas por Pixilinga (Érika) pela janela do carro, dava a sua inconfundível risada e, depois, se despedia porque, ao contrário da gente, tinha mais o que fazer. Como Lana (Roselane), Jane sempre pareceu mais madura ou mais focada, como se diz hoje em dia. Já era mais mulher do que menina. Pelo menos, era assim que eu percebia.

Muito tardiamente descobri que era virginiana. Muito tardiamente descobri que teria, muito em breve, 40 anos, a mesma minha idade e de Fosbi (Fabíola).

Mana (Sheila) e Liana, todas as velhas amigas, companheiras de risadas e muitas brigas, me deram notícias de Jane à época do São João, mas não me aconselharam ir até lá. Tive vontade e tive receio. Seu caso era grave, muito grave, mas ela alimentava a esperança de não sucumbir a mais terrível das visitas, aquela que nos levará embora a despeito de todos os pedidos em contrário. Jane amava a vida, tinha bom humor, e era uma excelente vendedora. Tudo isso me disseram porque já não se contam nos dedos os anos em que a vi pela última vez.

Também soube que continuava a usar a mesma franjinha no rosto, contrariando o jeito de mulher que sempre me pareceu possuir. Era uma mulher disfarçada de menina ou uma menina disfarçada de mulher? Nunca tivemos uma amizade íntima, mas eu sempre senti empatia por ela, julgando ser boa gente. Minha saída precoce de Caruaru não nos deu outras oportunidades. Com alguns hiatos, continuei mais próxima apenas de minha prima - que sempre me defendeu dos outros, mas, que paradoxalmente, me batia se tinha uma oportunidade - e de Fabíola, Roselane, Liana e Ivana.

Jane, ao contrário de mim, nunca saiu de Caruaru, no que fez bem feito. A gente fica sem raízes quando corre o mundo. É verdade que tem muitas histórias para contar, mas, ao mesmo tempo, fica meio solta, meio órfã de ruas e casas e telhados cotidianos. Tem saudade e desejo de voltar, mas já não sabe onde mora sua casa escondida, alugada, perdida.

Nunca pensei que pudesse um dia escrever um tipo de obituário. Nunca pensei que amigas e colegas de infância morressem. Pensei que tudo isso duraria para sempre. Estava bem errada.

Edjane de Melo Silva, nascida sob o signo de Virgem, casada e amada, pois assim me contaram, morreu vítima de câncer, na sexta-feira, 13 de julho de 2007, às 6h45 da manhã, na cidade em que viveu. Jogou vôlei, fez amigos, teve uma menina e um menino, dois irmãos, uma amigona (Heloína), outras amigas (Lúcia, Adjani, Giovana e quantas outras?). Deixou um lugar vazio, um lugar que nunca será de nenhuma outra pessoa, únicas que somos. Por um tempo, o choro no coração doído. E depois, quando os dias e os meses e os anos passarem, ficará a lembrança de uma franjinha, de um sorriso, de uma risada imensa ecoando na solidão.