terça-feira, maio 11, 2010

Uma moça sempre à janela


Sábado, que era de lua cheia, tornou-se Sábado de ruas alagadas. A casa da avó, uma ilha. Coitada da avó, quase cega e morando numa ilha.

Domingo, que era de chuva, tronou-se Domingo de rápido céu Blues. Beatriz precisava tomar coragem: sair da janela, almoçar, telefonar, organizar papéis diversos.

Na Segunda-feira, voltava para casa apressada. Chegava ofegante. Cabelo, blusa e sapato molhados para desespero da avó. Mas o juízo, pensava Beatriz, estava seco. Trocada a roupa molhada, ia à janela olhar a casa ilhada. Precisava mesmo organizar alguns papéis e apostilas. O guarda-roupa desarrumado a olhava de soslaio como a fazer sutil advertência pelo descaso com as coisas simples da vida. Da janela, seu ponto de observação mais legítimo, olhava o Inverno passar.

No Inverno, o mundo passava de guarda-chuva, capas escuras, botas cheias de lama, livros apertados junto ao peito. A casa da avó, uma ilha. A avó tolhida da tarefa de aguar as plantas, pequeno prazer diário que o Inverno lhe negava. Assim, era obrigada a passar os dias em frente à TV, olhando fixamente o aparelho velho e com defeito. O Inverno era apenas dois meses de chuva (e nenhum frio!), mas para a avó parecia nunca terminar. Passada a estação chuvosa, no entanto, nem se dava conta que tinha, sim, sobrevivido. Tinha, sim, conseguido ultrapassar manhãs e tardinhas, sem tirar as folhas secas da comigo-ninguém-pode, do cafezinho e da jibóia.

Na Terça-feira já era Verão. Encostada à moldura de madeira da janela imensa, Beatriz percebia que a tarde era de moças em bicicletas. Olhava-as a perder de vista e pensava que distância era algo muito engraçado. Existia e não existia. Depois, olhava as crianças passando e berrando e a mãe tentando acalmá-las – tarefa fadada ao fracasso. E, horas depois, via homens esquisitos com cara de traficantes, homens com cara de homens que olham seguidamente para trás, receosos de estarem sendo perseguidos. E o fato é que, situada naquele ponto privilegiado, Beatriz compreendia que nem uma formiga minúscula perseguia ou reparava naqueles homens esquisitos. A observadora atenta olhava, então, a avó mais uma vez no jardim, cuidando de suas plantinhas. A avó adivinhava as folhas secas, passíveis de corte: corte seguro-seco, aprendido ao longo dos anos.

(E o verde preciso da folhas do Cafezinho contrastando com o azul sem nuvens do céu de Agosto enchiam os olhos de Beatriz de difusa alegria. Nascera com essa predisposição para observar o mundo. Era bem verdade que, vez por outra, olhava, constrangida, seu próprio quarto, onde tudo estava continuadamente bagunçado. Com pesar, abandonava a janela e levava horas e horas na arrumação, consciente que, se houvesse limpado e organizado um pouco por dia, não gastaria tantas horas num só dia, mas, enfim.)

A faxina geral era feita às Quartas-feiras. Apesar da falta de disciplina, Beatriz escapava sempre por um triz. E porque na Quarta-feira acordava sempre indisposta e porque faxina mexia com sua areia movediça e porque a avó era sensível lhe fazia um chá de camomila.

A Quinta-feira passava muito apressada e, quando Beatriz se dava conta, já era noite cerrada.Restavam-lhe, então, algumas estrelas de ocasião e uma rima pobre.

Na Sexta-feira, tomava banho demorado, escovava os dentes brancos, usava fio dental, colocava calcinhas novas e mexia o bumbum tentando se equilibrar num palito de dentes. Olhava as poucas pessoas voltando para casa, dava tchau para avó, e desfilava para ninguém, uma noite inteira, em frente à sua própria janela.


(Texto 1997)

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