quarta-feira, novembro 05, 2008

Gramas de Soma


De cabeça para baixo já não podia ficar por muito tempo. As tragédias tinham deixado suas marcas na alma e no corpo. Assim era, portanto. Já não podia ficar de cabeça para baixo sem ter a sensação de que morreria sufocado. E, se morresse durante a noite, quantos dias levariam para que percebessem o seu desaparecimento?

Que importava também? Era só mais um no meio da multidão. Uma multidão ávida por uma vida nova. Vida nova significando carros novos, casas novas, amantes novos, geladeiras novas, lençóis novos, uma vida inteira novinha em folha era o grande sonho coletivo.

Estava tão desolado. Havia chegado ao final do ano e sabia que não havia chegado a lugar nenhum. Havia chegado ao final do ano e sabia que não havia chegado. Havia chegado ao final do ano. Estava sentado na mesma cadeira, no mesmo escritório, na mesma cidade, olhando o rosto aborrecido dos mesmos colegas. Não, não era isso o que tinha em mente, absolutamente.

Mais uma vez, tentou manter a coluna ereta, mas, desta vez, não funcionou. Seu plano de fuga também não. Se, ao menos, tivesse gramas de soma, como Bernard e Lenina, personagens de Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo, então poderia ficar horas e horas vivendo uma alegria inventada por admiráveis homens novos.

Mas não tinha nada, exceto essa dor que queimava o seu corpo por dentro e que o fazia pensar que lógica teriam a matéria, o corpo, a alma e o mundo. Não, não tinha nada. Não tinha família, não tinha amigos do peito, nem nada. Estava só no mundo. E isso não era lá uma coisa muito fácil de encarar, nem no final do ano, nem em tempo algum.

Seu coração experimentava tudo com dor e intensidade. Seria isso normal? Seria isso indicado? Não seria isso algo perigoso? Mas como fazer para deixar de ser assim? Como escrever essa narrativa impossível? Só Clarice encontrava alguma salvação pela palavra. Mas Clarice era Clarice e ele era apenas um rapaz latino-americano sem parentes importantes e vindo do interior.

Se ao menos tivesse um pouco de soma, viajaria pelo espaço sideral e não ficaria tão aborrecido com o cenário inventado por estranhos seres, apelidados de arquitetos do futuro.

Futuro, futuro, futuro, desde Pedro negando Jesus três vezes. Não, não era isso o que tinha em mente, absolutamente.


(Foto 2008)

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