quarta-feira, novembro 10, 2010

Pequeno e modesto


Acordar e pensar: hoje. Hoje, o quê? Levantar, fazer xixi, dar descarga, lavar as mãos, voltar para cama e pensar: hoje. Hoje, o quê? Virar para um lado, virar para o outro, olhar o horário no celular e pensar: hoje. Hoje, o quê? Puxar o ar, buscar prumo, levantar.

Vivia num completo anonimato. Ele e suas coleções de discos raros, recortes, fotografias antigas, poeira e solidão. Tinha mulher, filho e netos, mas eles todos eram bem menos importantes do que a sua coleção de memórias.

Tinha sido ensimesmado desde sempre. Aos nove anos, já ficava olhando estrelas pela janela do pequeno duplex em que a família morava. O subúrbio era um dos poucos lugares de onde era ainda possível ver o céu.

Aos 15 anos, quando a família convidava para dar uma volta, visitar parentes, tomar um banho de mar, ir à padaria, trocar um pneu furado, invariavelmente, balançava a cabeça, e isso já era o suficiente para que todos entendessem que ele não iria à parte alguma, pelo menos se assim fosse permitido.

Como não incomodava, para a família pouco importava que não tivesse o ímpeto dos meninos de sua idade - sempre tão ávidos pela rua, pelo barulho dos vendedores ambulantes e por tudo, enfim, que estivesse do lado de fora de casa.

Quando resolveu pedir em casamento a sua vizinha de bloco, até a moça estranhou, mas, como não tinha mesmo outra proposta, achou por bem aceitar e não se falou mais nisso. Os filhos nasceram, eram sadios e também não se falou muito nisso.

O quarto onde guardava suas relíquias era pequeno e modesto. Ali, colocou pequenas tábuas, que nem bem lixadas eram, e foi agrupando, por nome e data de divulgação, os discos comprados com o troco que lhe sobrava de um salário tão sem graça quanto o próprio ofício que era obrigado a manter.

Todos os dias, andava quase um quilômetro para evitar duas conduções rumo à fábrica de soda cáustica, onde trabalhava desde adolescente. Não tinha especialização, mas fazia de tudo um pouco, tão logo fosse chamado a ajudar o assistente do diretor-geral, os setoristas e mesmo os ajudantes dos ajudantes, nessa hierarquia quase sempre flexível de uma empresa familiar, que ninguém sabia ao certo para onde iria, em tempos de preocupações ambientais.

Depois do trabalho, passava regularmente em pequenos sebos desorganizados, olhando cada livro mal cuidado como um objeto de museu. Seus olhos percorriam vagarosamente todas as pequenas caixas com volumes desatualizados e sem a menor importância literária.

Dali, seguia para uma pequena sala comercial no centro da cidade, onde antigos conhecidos costumavam fazer trocas de discos e objetos encontrados em outras cidades, em restos de mudança, e em outros lugares não sabidos e mais do que ignorados.

Ao voltar para casa, os filhos já estavam meio quietos. A mulher não lhe fazia muitas perguntas e ele comia qualquer coisa que estivesse à mesa, fazendo pouca questão acerca desses assuntos ligados à saúde e à boa nutrição.

Depois, procurava um pedaço de céu e lentamente já se organizava para dormir.

Antes de pegar no sono, de maneira recorrente, pensava: dormir, e o quê?



Quarta-feira, 03 de novembro de 2010